Memória irreal em um mundo de realidade aumentada

Última atualização: 6 de janeiro de 2019
Tempo de leitura: 4 min

Mundo estranho esse que vivemos. Acredito que todos concordam que nossa memória é um patrimônio, mas muitas vezes nos coloca em situações difíceis. Enquanto alguns vivem esquecendo onde colocaram as chaves do carro, existem pessoas que chegam a afirmar que lembram de seu próprio nascimento. Tecnicamente, especialistas afirmam que isso não é possível, pois não fixamos memórias antes dos 5 anos. Eles explicam que uma pessoa pode se lembrar de fragmentos da infância porque sua mãe pode ter falado repetitivamente determinadas passagens. Frases como: “Lembra quando eu te levava para passear em um carrinho grande e azul? Você se lembra, não é?”. E o indivíduo de forma condicionada, cria uma imagem mental do carrinho em sua memória. Tempos depois, essa mesma pessoa pode jurar e acrescentar detalhes deste carrinho que nunca existiram. São as chamadas “memórias fictícias”.

Os avanços tecnológicos estão colocando esse patrimônio em risco. Como se já não bastasse as “Fake News” produzidas por interesses externos duvidosos, nosso próprio cérebro, às vezes, complica as coisas. Para ilustrar o que digo, proponho explorarmos como funciona o mecanismo que nos permite recordar e também de como esquecemos. No final do século 19, o alemão Herman Ebbinghaus, um dos pioneiros nesta área, criou um experimento para testar a memória de algumas pessoas. Primeiro, listou centenas de palavras sem sentido. Depois, mediu quanto tempo cada indivíduo levava para lembrar ou esquecer aquelas palavras. Fez testes com períodos de tempo que iam de 20 minutos a um mês. Assim, ele chegou à conclusão de que nos esquecemos de forma totalmente previsível. A “curva do esquecimento”, batizada por ele, é exponencial, ou seja, nos esquecemos mais intensamente de início e, depois, o processo se atenua. Se, por exemplo, você estudou francês no colégio e depois parou, notou que o número de palavras de que se recorda caiu rapidamente no primeiro ano, mas que, depois, o ritmo desse esquecimento foi caindo. Ebbinghaus observou também que essa curva muda com a idade e que as crianças se esquecem mais rapidamente.

Estar constantemente lembrando e esquecendo é a chave para entender por que somos tão inteligentes e criativos. Quando aprendemos algo pela primeira vez, criamos uma nova ligação entre áreas do nosso cérebro, que nunca antes foram conectadas. E, para criar novas conexões, é preciso ter sempre espaço de sobra. Por isso é bom esquecer. Similar ao conceito defendido por vários cientistas cognitivos, determinando que para aprendermos coisas novas, devemos desaprender as coisas antigas. Porém, nem tudo é perfeito. Mesmo maravilhoso, nosso cérebro é limitado. Muitas vezes lembramos de coisas sem importância e esquecemos coisas que nos farão falta. Quando precisamos lembrar de algo, muitas vezes para dar sentido à história, o cérebro recorre à imaginação preenchendo os buracos em modo automático. Como não poderia deixar de ser, ele faz esse trabalho da forma mais criativa possível, usando o que estiver à disposição. Quem já não teve dúvidas se algo realmente aconteceu ou foi apenas um sonho? A percepção de realidade não é o ponto forte das nossas lembranças.

Isso sempre foi assim, e com o avanço da tecnologia o quadro está se tornando extremamente complexo. Como serão nossas memórias no futuro com o aumento das imagens virtuais? Na realidade aumentada, por exemplo, temos experiências interativas de um mundo real, onde objetos que residem neste são “acentuados” por informações perceptivas criadas por computadores, incluindo visual, auditiva, háptica, somatossensorial e olfatória. Desta forma a realidade aumentada “altera” a percepção do nosso mundo real. Várias situações ficam registradas. Nem tudo existe, mas é como se existisse. Imagine o que acontecerá com a nossa memória ao longo do tempo com exposições cada vez mais constantes destas experiências.

Infelizmente, não temos o controle das nossas lembranças da forma que gostaríamos, e passamos boa arte da vida sujeito àquilo que o cérebro decide lembrar, inventar e, finalmente, esquecer. Se não bastasse, complicamos todo o processo com abundância de informações, estímulos irreais, pressão social no gerenciamento das relações e intervalo cada vez menor para nossas decisões.

O filósofo Schopenhauer, também do século 19, afirma que a loucura não deveria ser atribuída à uma perturbação mental, mas à uma disfunção da memória. A fim de evitar rememorar uma grande dor, a vontade da pessoa faria com que ela não fosse mais capaz de ordenar o pensamento. As lembranças não estariam subordinadas ao intelecto, mas sim à vontade. Intelecto e vontade são independentes e soberanos, mas quem prevalece no processo psíquico é a vontade.

Depressão e ansiedade já possuem aspectos epidêmicos. O mundo, além de estranho, está cada vez mais complexo. Podemos, em breve, juntar a esse cenário a insanidade. Mas, também, temos que concordar que a loucura tem seu lado bom. Afinal, quem não se lembra de ter cometido uma loucura, não pode ser considerado normal.

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Marcelo Molnar

Sobre o autor

Marcelo Molnar é sócio-diretor da Boxnet. Trabalhou mais de 18 anos no mercado da TI, atuando nas áreas comercial e marketing. Diretor de conteúdo em diversos projetos de transferência de conhecimento na área da publicidade. Consultor Estratégico de Marketing e Comunicação. Coautor do livro "O Segredo de Ebbinghaus". Criador do conceito ICHM (Índice de Conexão Humana das Marcas) para mensuração do valor das marcas a partir de relações emocionais. Sócio Fundador da Todo Ouvidos, empresa especializada em monitoramento e análises nas redes sociais.

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