Censura por Saturação

Última atualização: 23 de julho de 2025
Tempo de leitura: 6 min

A distração foi elevada à condição de sistema de governo. A lógica do espetáculo não se limita ao entretenimento, mas estrutura as relações de poder. A liberdade, tão proclamada, já não é mais refém da censura tradicional, e sim do excesso de informação irrelevante, da fragmentação calculada da atenção coletiva, da administração algorítmica daquilo que chamamos de opinião pública. Trata-se de uma Censura por Saturação: não se impõem silêncios, impõem-se ruídos. A velha mordaça foi substituída pela overdose de estímulos, e o colapso do discernimento passa despercebido porque somos mantidos ocupados demais para perceber que já não pensamos por conta própria. A tirania contemporânea não tem rosto, nem uniforme. É líquida, fluida e distribuída por milhões de telas que nos convencem de que estamos informados enquanto somos, na verdade, distraídos.

No passado, regimes autoritários queimavam livros, controlavam editoras e impunham versões únicas da realidade. Hoje, a pluralidade superficial de vozes disfarça a homogeneização profunda dos afetos. A inteligência coletiva, que deveria ser cultivada como ferramenta de emancipação, foi convertida em capital de influência. Não é preciso proibir o pensamento quando se pode anestesiá-lo com escândalos recicláveis, indignações instantâneas e debates cuidadosamente administrados para não tocar em estruturas. A polarização não é um sintoma da crise, é sua tecnologia de manutenção. A disputa teatral entre supostos opostos mantém intactos os pilares do sistema que realmente importa: o que transforma atenção em lucro, e lucro em poder.

O drama é que nem o caos é espontâneo. Vivemos sob o regime da alienação planejada, onde cada indignação tem um cronograma, cada “verdade revelada” é um ensaio e cada voz dissonante é absorvida pelo próprio ruído que deveria combater. A saturação de conteúdo gera uma espécie de imunodeficiência cognitiva. O sujeito, incapaz de distinguir o essencial do descartável, se entrega à anestesia do scroll infinito. As redes sociais, outrora anunciadas como ferramentas de democratização da informação, tornaram-se máquinas de erosão da profundidade. Transformam qualquer acontecimento em espetáculo, qualquer causa em estética e qualquer urgência em trending topic.

Neste teatro saturado, o jornalismo perde espaço não por ser desnecessário, mas por ser lento demais para competir com a velocidade dos memes. A reflexão foi vencida pela performance, e o argumento, substituído pela viralização. A democracia, para existir, exige pausas. Exige silêncio e elaboração. Mas isso custa caro em um ambiente onde tudo precisa gerar engajamento imediato. A lógica da atenção transformou-se em lógica de mercado, e o mercado não se interessa por cidadãos críticos. Prefere consumidores distraídos.

A destruição das estruturas democráticas não acontece mais sob tanques ou golpes explícitos, mas sob numerosos decretos, sustentados por narrativas controladas e por uma população emocionalmente esgotada. O Estado é reconfigurado não por ideologias claras, mas por interesses ocultos que moldam o horizonte do possível. A máquina estatal é ocupada por agentes que não respondem à coletividade, mas aos algoritmos. Governos eleitos tornam-se operadores de um código-fonte que não redigiram, reféns de uma linguagem que não compreendem completamente. O discurso público é sequestrado por cliques, curtidas e influenciadores cuidadosamente integrados às engrenagens da dispersão, num cenário marcado pela Censura por Saturação.

Nesse cenário, políticas públicas são desmontadas não por votos, mas por gestos simbólicos performados. O retrocesso é moldado com verniz de inovação. A destruição ambiental é reembalada como desenvolvimento necessário. A entrega do patrimônio público é apresentada como modernização. A regressão social é vendida como liberdade. Enquanto isso, a linguagem da tecnocracia avança, anestesiando o campo político com gráficos, dashboards e promessas vazias de eficiência. Tudo é feito em nome do futuro, mas nada é feito com responsabilidade intergeracional. As crianças de hoje não herdarão um planeta: herdarão uma simulação instável da realidade.

A liberdade de expressão existe, mas está desidratada de significado. Não se trata de dizer o que se quer, mas de saber o que importa ser dito. Em um ambiente onde tudo é permitido, a relevância é o que desaparece. Falta atenção crítica, falta hierarquia informativa, falta disposição para sustentar uma ideia até que ela floresça em consequência. As universidades, que poderiam ser territórios de resistência, também se dissolvem em disputas superficiais, corroídas por burocracias que trocam excelência por quotas simbólicas de inclusão ou por políticas administrativas que tratam o saber como KPI. A corrosão do pensamento começa onde o pensamento precisa justificar sua existência em relatórios.

O mais trágico é que a fuga não é mais possível. Não existe mais “lado de fora”. A distração é o novo território soberano, onde os bilionários celebram, não porque venceram um embate, mas porque ninguém mais está lutando. A política se converteu em coreografia, e os governos, sejam autoritários ou democráticos, são apenas palcos para um enredo escrito por interesses não-eleitos. O paradoxo é que, mesmo nas democracias mais antigas, as decisões realmente relevantes são tomadas longe do voto e perto dos fóruns privados de poder informacional cenário típico da Censura por Saturação, onde a abundância de ruído esvazia qualquer possibilidade de resistência consciente.

Enquanto isso, refugiados capacitados vagam sem destino. São expulsos não só pela guerra ou pela fome, mas pela obsolescência das suas competências diante de um mundo que valoriza a performance acima do conhecimento. Não há país de destino para quem carrega no corpo uma educação que já não serve ao novo mercado da distração. São exilados da relevância. Não porque não saibam, mas porque saber já não é o bastante. Vivemos um tempo onde o conhecimento perdeu prestígio e a dúvida perdeu lugar.

Se ainda houver algum horizonte possível, ele passará pela reconstrução da atenção como patrimônio coletivo. Não se trata de nostalgia por um tempo em que se lia mais ou se pensava melhor, mas da consciência de que nenhuma sociedade pode sustentar estruturas complexas se sua base cognitiva for um feed desorganizado. Precisamos resgatar o silêncio como ferramenta de discernimento, a lentidão como método de compreensão e a escuta como ato político. A urgência não é de opinião, é de lucidez.

Sem isso, seremos apenas figurantes do espetáculo da sobrevivência institucional. Personagens de um teatro onde todos falam, mas ninguém escuta. Onde tudo muda, mas nada se transforma. Onde a distração não é falha, é o projeto. Precisamos mudar, pois a verdade, como sempre, é a última a aparecer no palco. E isso não pode acontecer depois que todos já tiverem aplaudido.

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Marcelo Molnar

Sobre o autor

Marcelo Molnar é sócio-diretor da Boxnet. Trabalhou mais de 18 anos no mercado da TI, atuando nas áreas comercial e marketing. Diretor de conteúdo em diversos projetos de transferência de conhecimento na área da publicidade. Consultor Estratégico de Marketing e Comunicação. Coautor do livro "O Segredo de Ebbinghaus". Criador do conceito ICHM (Índice de Conexão Humana das Marcas) para mensuração do valor das marcas a partir de relações emocionais. Sócio Fundador da Todo Ouvidos, empresa especializada em monitoramento e análises nas redes sociais.

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