Última atualização: 14 de outubro de 2020
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O ano de 2020 entrará para a história de forma especial. A pandemia de coronavírus colocou a valorização do digital na vanguarda dos pensamentos e das atividades humanas. As pessoas adotaram o distanciamento social como uma forma de desacelerar a propagação da pandemia e, naturalmente, houve uma queda nas interações físicas. Inventamos um novo mundo. Um misto de insegurança e emoção. Lembrei-me do Second Life. Para os mais novos que não acompanharam a evolução tecnológica do início deste século, o Second Life foi um ambiente virtual que simulava a vida real. Ele foi criado em 1999 e desenvolvido em 2003. Ganhou adeptos no mundo inteiro, incluindo o Brasil, onde fez sucesso até 2007, mas rapidamente caiu no esquecimento. Era um tipo de jogo que oferecia uma opção de vida paralela. Várias empresas e marcas investiram pesado comprando “terrenos” dentro do jogo. Aqui no Brasil o destaque ficou com a Petrobrás, que criou na plataforma ambientes de interação com o público, destacando a utilização de novas tecnologias, exemplo de modernização para a época.
A queda de popularidade do Second Life pode ser analisada e explicada hoje por vários motivos. Era um ambiente erotizado e consumista, proibido para as crianças. As transações comerciais dentro do jogo, principalmente para a customização de avatares, apesar de ter uma moeda própria, envolvia dinheiro de verdade. Jogos de azar, injúria e difamação eram restritos e proibidos. Salas de sexo entre avatares humanos e animais eram liberadas e tidas como locais interessantes. As interações com outros jogadores limitavam-se ao diálogo e à encenação de algumas atividades, como festas e reuniões. Muitos usuários viram neste ambiente digital uma oportunidade para lucrar, influenciadas pelo sucesso de algumas pessoas que compravam e vendiam terrenos dentro do “jogo”. Muitos perderam. Mas o motivo principal do fracasso foi a descoberta que administrar uma vida já é difícil. Duas então, impossível.
Anos depois do fracasso do Second Life surgiu a “febre das redes sociais”. Elas herdaram grande parte de sua audiência, oferecendo novas alternativas para a socialização no ambiente virtual. E nestes novos ambientes, a proposta é que você seja você mesmo, apesar de algumas controvérsias. A oportunidade e o poder de participação em atividades diversas da sociedade, quase que impôs a obrigação do envolvimento. Isenção passou a ser percebida como alienação. A opinião individual passou a ser valorizada. Minorias passaram a se organizar e a lutar por mais espaço, atenção e aceitação. Assistimos a grandes mobilizações e manifestações por todo o mundo. A polarização foi inevitável. Recentemente uma plataforma denominada de Sansar, utilizando criações em realidade virtual evita prometer dar sequência ao Second Life, mas é inevitável a comparação.
Fato é que a pandemia atual transformou o nosso comportamento e ficamos ainda mais dependentes dos apelos tecnológicos. As ferramentas gratuitas de comunicação, interação e relacionamentos digitais já nos havia viciado e criado compulsão. Essa dependência emocional juntou-se a obrigação racional e lógica do distanciamento. O medo da doença, a falta de uma vacina de proteção e a publicidade constante das mortes, nos colocou de joelhos. Em breve deveremos controlar os efeitos da Covid-19 em relação a saúde, mas as mudanças que ela provocou na forma como vivemos serão definitivas.
Na antiguidade, Platão filosofava sobre a importância de suprimir o sentimento para poder racionalizar. Tempos depois, Descartes pregou a separação entre a razão da emoção, alegando que seriam processos excludentes. Mas continuamos a busca do equilíbrio entre essas duas forças. Tanto a emoção quanto a razão fazem parte indissociável do ser humano, são interconectadas. Das mais simples as mais complexas, nossas decisões não são construídas utilizando lápis, papel e calculadora. A imensa maioria das escolhas humanas são realizadas a partir de algoritmos sofisticados conhecidos como sensações, emoções e desejos.
Como resultado sofremos o chamado efeito Dunning-Kruger. Pois, apesar de possuirmos pouco conhecimento sobre determinados assuntos acreditamos saber mais que do que realmente sabemos. Nossa incompetência restringe a capacidade de reconhecer os próprios erros. Sofremos de superioridade ilusória. Em contrapartida, a competência real enfraquece a autoconfiança e algumas pessoas muito capacitadas sofrem de inferioridade ilusória. Podemos pensar que não somos muito capacitados e subestimamos nossas próprias habilidades, chegando a acreditar que outros indivíduos menos capazes também são tão ou mais capazes do que nós.
Mas a verdade é que a grande maioria das vezes decidimos emocionalmente. A emoção decide, o racional explica. A emoção é mobilizadora, o racional é contemplativo. A emoção nos leva as ruas com cartazes de frases únicas, o racional nos leva aos livros de reflexões profundas. Nos tempos atuais possuímos uma geração de jovens que não suportam 30 segundos de abstração. Neste complexo jogo entre a síndrome do impostor e uma autoconfiança cega, acreditamos que estamos no controle das nossas vidas. Pura ilusão. O mesmo ilusionismo que nos faz confundir o ventríloquo com o boneco.
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