Última atualização: 28 de maio de 2025
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Em 1988, um jovem acadêmico chinês chamado Wang Huning cruzou o Atlântico com um caderno de anotações e uma curiosidade afiada. Durante seis meses, percorreu 30 cidades e 20 universidades americanas, dissecando a alma de uma superpotência. O resultado foi America Against America, um livro que não apenas diagnosticou as contradições do capitalismo e da democracia americana, mas também, talvez sem querer, expôs um espelho incômodo para a própria China — revelando que o perigo não está na diferença, mas nas semelhanças que ameaçam corroer identidades e sistemas por dentro.
Hoje, enquanto EUA e China se encaram numa guerra fria tecnológica, com a inteligência artificial como arma de ponta, a narrativa dominante insiste em suas diferenças: democracia versus autoritarismo, mercado livre versus controle estatal. Mas… e se o verdadeiro perigo não estiver na diferença, e sim na igualdade? E se, como sugere Wang, os apoiadores de Trump e o regime de Xi forem apenas reflexos distorcidos do mesmo impulso humano por controle, identidade e supremacia?
Wang, agora eminência parda do Partido Comunista Chinês, viu nos EUA de 1988 um caldeirão de contradições: individualismo corrosivo, desigualdade galopante, uma cultura mercantilizada e uma democracia caótica. Ele alertou para os riscos que tais males representavam à coesão social. Mas o que talvez não tenha previsto — ou optou por ignorar — é que a China, sob o verniz do socialismo, seguiria um caminho surpreendentemente semelhante.
A desigualdade, que ele criticou nos guetos americanos, floresce hoje nas megacidades chinesas. A mercantilização cultural, que deplorou na TV americana, infiltra-se na cultura pop chinesa — filtrada, é claro, pelo Partido. E a busca por coesão social transformou-se em um sistema de vigilância algorítmica, tão intrusivo quanto as bolhas informativas alimentadas por IA no Ocidente.
Considere o nacionalismo: nos Estados Unidos, o “Make America Great Again” de Trump canaliza a frustração de uma classe trabalhadora que se sente traída pela globalização e pelas elites. Na China, o “Sonho Chinês” de Xi Jinping evoca a revanche de uma nação que, humilhada pelas potências coloniais no século XIX — especialmente durante as Guerras do Ópio e a intervenção estrangeira na dinastia Qing —, agora busca reafirmar seu lugar de liderança no mundo. De um lado, viralizam-se postagens populistas; do outro, filtra-se o que pode ou não ser visto. Em comum, o uso da tecnologia para inflamar identidades nacionais e definir um “outro” a ser combatido.
A desconfiança nas elites também une os dois universos. Os trumpistas enxergam a mídia, a academia e o judiciário como traidores do “povo verdadeiro”. Na China, o discurso oficial apresenta o universalismo ocidental como uma conspiração para enfraquecer a soberania nacional. Trump se vende como o vingador do povo. Xi se apresenta como restaurador da grandeza chinesa. Ambos concentram o poder em si mesmos — com a IA como cúmplice: de um lado, moldando feeds para alimentar bolhas emocionais; do outro, monitorando e calibrando comportamentos em nome da estabilidade social. O perigo não está na diferença, mas na forma como caminhos distintos produzem estratégias semelhantes de controle e manipulação.
A vigilância, que antes parecia uma grande linha divisória entre Oriente e Ocidente, hoje se revela espelhada. Nos EUA, algoritmos privados moldam hábitos e opiniões para maximizar lucro e engajamento. Na China, o Estado molda condutas para preservar o poder político. Diferentes métodos, mesmo objetivo: prever e induzir o comportamento humano.
E a desigualdade? Nos EUA, a automação e a concentração de dados em gigantes de tecnologia geram novas castas econômicas, enquanto antigos empregos desaparecem. Na China, o slogan da “prosperidade comum” encobre a persistência de disparidades brutais entre zonas urbanas e rurais. A IA, em ambos os casos, em vez de corrigir distorções, as cristaliza.
Por fim, a corrida por hegemonia global. Os EUA reivindicam a excepcionalidade de sua missão histórica. A China constrói sua nova Rota da Seda digital. Hoje, a IA alimenta drones militares, plataformas de censura, manipulações de informação e redes de infraestrutura estratégica. Não estamos assistindo a um duelo entre opostos. Estamos vendo uma disputa entre estruturas que evoluíram para se parecer mais do que jamais admitiríamos.
Entender essas convergências exige mais do que observar os fatos isoladamente. Exige a capacidade de cruzar sinais fracos, padrões subterrâneos e movimentos aparentemente desconexos. É nesse cenário que metodologias analíticas mais sofisticadas — como as desenvolvidas pela Boxnet, que combinam inteligência humana e artificial para revelar conexões invisíveis — se tornam não apenas diferenciais, mas instrumentos essenciais de interpretação do mundo real.
Wang Huning, ao escrever America Against America, queria proteger a China de repetir os erros que viu nos Estados Unidos. Ironicamente, os dois gigantes caminham hoje lado a lado em direção a abismos similares: nacionalismo febril, líderes carismáticos, sociedades algorítmicas. A IA, longe de ser uma ferramenta neutra, apenas acelera a marcha. O perigo, no fim das contas, não está nas diferenças que nos ensinaram a temer — mas na igualdade perturbadora que é difícil perceber.
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