O Jornalismo Que Alimenta a Fera

Última atualização: 5 de novembro de 2025
Tempo de leitura: 4 min

Há algo de irônico. E dolorosamente previsível. O que está acontecendo com a indústria da informação não é surpresa para quem vinha observando os sinais. Depois de anos correndo atrás de tráfego como quem caça ouro em riachos digitais, a imprensa agora se vê triturada pela lógica que ajudou a construir — O Jornalismo Que Alimenta a Fera. Não foi uma queda repentina, foi uma erosão silenciosa. E agora, com os chamados AI Overviews tomando conta das buscas, a ficha caiu. O Google não está mais apenas apontando para os sites de notícia. Está substituindo-os.

O artigo de Alex Reisner, publicado na The Atlantic sob o título “AI Is Already Crushing the News Industry”, é mais do que um alerta. É uma espécie de autópsia antecipada. Nele, Reisner expõe como os resumos automatizados, gerados por modelos de linguagem, estão sendo exibidos diretamente nos resultados de busca, reduzindo drasticamente os acessos aos produtores de conteúdo original. O impacto é direto. Menos cliques, menos receita. E os pilares já frágeis do jornalismo digital começam a ruir.

Enquanto isso, as grandes plataformas de inteligência artificial continuam se alimentando do conteúdo que elas mesmas estão sufocando. A cena é grotesca. A imprensa profissional produz. A máquina mastiga e regurgita. Entrega tudo num parágrafo sintético e automático. E o usuário, satisfeito, sequer visita o site que deu origem à resposta. Chamam isso de eficiência. Mas como toda eficiência sem ética, o preço aparece depois.

O que está em jogo não é apenas o modelo econômico. É o ecossistema informacional como um todo. Porque se os jornais quebrarem, quem vai escrever aquilo que as máquinas vão resumir? A pergunta parece simples, mas a resposta nos empurra para um beco mais sombrio. O Jornalismo Que Alimenta a Fera nos conduz a uma nova forma de oralidade, onde a autoridade que resume a realidade não é mais o sacerdote nem o âncora. É um modelo estatístico, opaco, desprovido de consciência e, muitas vezes, de responsabilidade.

É fácil culpar os engenheiros. Ou os CEOs das grandes empresas de tecnologia. Ou os programadores que treinam modelos com textos jornalísticos sem pagar. Mas seria um erro esquecer que a imprensa também tem sua parcela de culpa. Durante anos, boa parte dos veículos sacrificou profundidade em nome de cliques. Optaram por manchetes apelativas, repetiram conteúdos de agências, terceirizaram o pensamento. A obsessão por SEO virou vício.

É verdade que há exceções. Redações que resistem, que buscam novos caminhos. E é verdade também que a IA pode ser útil ao jornalismo, se usada como ferramenta e não como substituta. Mas para isso, é preciso abandonar a lógica da sobrevivência via tráfego e recuperar a centralidade da narrativa. A IA não destrói o jornalismo. Ela expõe o que já estava frágil. Se os leitores recebem uma resposta pronta do Google e não sentem falta do artigo original, talvez a culpa não seja só da IA. Talvez o conteúdo não estivesse entregando nada além do que a IA já consegue oferecer.

Os números não mentem. Em alguns veículos, a perda de tráfego ultrapassa metade da audiência. Isso não é apenas uma tendência. É uma sentença. E mesmo assim, as reações ainda soam tímidas. Fala-se em processos, em acordos de licenciamento, em tentativas de negociação. Tudo justo. Mas talvez tudo isso chegue tarde. O Jornalismo Que Alimenta a Fera segue empurrando a lógica que agora o engole: enquanto os jornais defendem seus tijolos, a informação já virou vapor. A IA já aprendeu com eles. Já reproduz seus estilos, seus vícios, suas estruturas. Agora, resta saber quem ensinará à IA aquilo que o jornalismo ainda não aprendeu.

Sem jornalismo, a IA empobrece. ChatGPT, Gemini, Claude. Todos dependem de material humano para aprender. Precisam de bons textos, argumentos sólidos, investigações sérias. Se destruírem as fontes, destruirão também a qualidade do que são capazes de produzir. Mas esse raciocínio pressupõe um nível de consciência que os algoritmos não têm. E que muitos dos seus criadores fingem não importar.

Estamos diante de um divisor. Se a informação virar apenas um ativo estatístico, se os veículos forem reduzidos a dados de treinamento, se o jornalismo deixar de ser farol para virar apenas ração para máquina, o prejuízo será coletivo. Não será apenas financeiro. Será epistemológico. A pergunta não é se a IA vai substituir os jornalistas. A pergunta é: quando isso acontecer, o que ainda será verdade?

Talvez o desafio mais urgente seja restaurar o valor da dúvida. Do contexto. Da apuração. Lembrar que o jornalismo não é uma linha de montagem de palavras, mas um processo de enfrentamento do caos. A imprensa será relevante no futuro apenas se abandonar a tentativa de imitar a máquina.

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Marcelo Molnar

Sobre o autor

Marcelo Molnar é sócio-diretor da Boxnet. Trabalhou mais de 18 anos no mercado da TI, atuando nas áreas comercial e marketing. Diretor de conteúdo em diversos projetos de transferência de conhecimento na área da publicidade. Consultor Estratégico de Marketing e Comunicação. Coautor do livro "O Segredo de Ebbinghaus". Criador do conceito ICHM (Índice de Conexão Humana das Marcas) para mensuração do valor das marcas a partir de relações emocionais. Sócio Fundador da Todo Ouvidos, empresa especializada em monitoramento e análises nas redes sociais.

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