
Última atualização: 10 de dezembro de 2025
Tempo de leitura: 6 min
A história das sociedades humanas pode ser contada a partir daquilo que organiza o poder. Durante séculos a terra foi a grande fonte de riqueza e domínio, e dela derivou o feudalismo, onde tudo girava em torno da posse territorial. O capital existia, mas subordinado à terra, quase como um detalhe. Com o capitalismo, a lógica se inverteu. O dinheiro emancipou-se e tornou-se soberano, transformando terra, trabalho e até tempo em mercadoria. O capital passou a reger as hierarquias, dissolvendo a rigidez feudal e instaurando um sistema no qual a acumulação financeira era a medida máxima de poder. Agora, no entanto, parece que vivemos um novo deslocamento. Ainda presenciamos guerras territoriais. O capital continua sendo importante, mas já não é suficiente. Surge uma estrutura mais difusa e mais decisiva: os algoritmos. É o início do que se pode chamar de autoritarismo algorítmico, uma ordem em que a riqueza, a influência e a própria legitimidade política passam a depender do controle da informação e da arquitetura invisível que organiza nossas percepções e escolhas.
Não se trata de um detalhe técnico ou de um recurso auxiliar, mas de uma mutação histórica. O algoritmo não é apenas um instrumento que ajuda o capital a crescer, mas um novo fundamento que reconfigura o próprio capital. Quem controla as plataformas que filtram, ranqueiam e distribuem dados detém o poder real. Bancos, governos e corporações que antes se bastavam com sua força financeira agora dependem dessa camada informacional. A economia não se move apenas por dinheiro, mas pela capacidade de direcionar fluxos de atenção, influenciar crenças e moldar comportamentos. É um poder mais sutil que a terra e mais maleável que o capital, mas, por isso mesmo, muito mais penetrante. Ele não se impõe por bombas nem apenas por cifras, mas por interações invisíveis que definem o que vemos, o que sabemos e até o que pensamos.
Esse novo regime econômico se encontra com uma forma política peculiar. Não é fascismo no molde clássico do século XX, marcado por militarismo explícito e ditaduras declaradas. O que vemos é mais híbrido, mais escorregadio. É uma combinação de populismo emocional com manipulação algorítmica. Em vez de abolir partidos, multiplica-se a sensação de polarização absoluta, como se só existissem dois lados possíveis, cada um alimentado por narrativas fabricadas sob medida. Em vez de censura aberta, há curadoria seletiva, reforço de bolhas, hierarquização oculta do que circula e do que desaparece. Em vez de uniformes e hinos, temos memes e campanhas de desinformação com precisão cirúrgica. Tudo isso dentro de um sistema que ainda se chama democrático, mas que já opera sob novas regras. É uma democracia sem colapso formal, e justamente por isso mais difícil de identificar.
Nesse ambiente, líderes populistas encontram terreno fértil. Eles não precisam construir grandes partidos de massa, nem impor uma ideologia coerente. Basta saber acionar emoções específicas e amplificar ressentimentos com a ajuda de narrativas que já conhecem cada detalhe da vida de seus eleitores. O demagogo contemporâneo não depende de rádios estatais nem de jornais domesticados. Ele tem ao seu dispor a infraestrutura digital que o conecta diretamente ao desejo imediato das multidões. O populismo ganha assim um aliado perfeito: a precisão estatística dos sistemas de recomendação, que transformam indignação em engajamento, medo em fidelidade e mentira em combustível político.
O resultado dessa fusão é um sistema de poder que não se apresenta como ruptura, mas como continuidade. As instituições permanecem de pé, os ritos democráticos continuam, a pluralidade formal não desaparece. Regulamentação é vista como censura. No entanto, tudo funciona como se estivesse programado por dentro. A versão substitui a realidade, a verdade passa a ser definida por aquilo que mais circula, e a soberania popular se converte em soberania algorítmica. É a ilusão de escolha em meio à captura da atenção. O eleitor continua votando, mas o campo de opções que lhe chega é delimitado por filtros invisíveis. A opinião pública continua existindo, mas já não se forma livremente: é conduzida, estimulada e moldada por uma lógica que maximiza engajamento, não racionalidade.
O autoritarismo algorítmico é perverso justamente porque não precisa se anunciar. Ele não exige tanques nas ruas, apenas linhas de código. Não precisa silenciar jornais, basta sufocar seu alcance. Não necessita proibir partidos, mas sim intensificar a polarização até que ela pareça inevitável. Sua força não está em controlar corpos por meio da força bruta, mas em administrar mentes por meio da informação. É um autoritarismo sem ditadura, um fascismo sem marcha militar, um domínio que se infiltra sob a máscara da liberdade digital. O espaço público, que deveria ser plural, converte-se em território fragmentado de bolhas, cada uma reforçando certezas e anulando o diálogo. A própria ideia de realidade compartilhada começa a se dissolver.
Não se deve pensar que isso é um destino inevitável, mas tampouco que se trata de um exagero retórico. A transição já está em curso. Empresas de tecnologia detêm hoje um poder de intermediação maior do que muitos Estados. Decidem o que é visível e o que é marginal. Legisladores tentam agir nesse processo, mas em geral já partem de uma posição defensiva, limitada e direcionada, reagindo a crises e escândalos em vez de construir regras flexíveis. O capital, que antes era soberano, tornou-se também dependente dessas plataformas. Investimentos, mercados e reputações são afetados em segundos por dinâmicas virais. O algoritmo se impôs como a nova terra, o novo chão sobre o qual todos pisam, inclusive aqueles que ainda acreditam que governam.
O risco maior é acreditar que estamos apenas diante de uma etapa do capitalismo digital. O que se desenha é mais profundo: é uma reordenação do poder em escala civilizacional. Se o feudalismo foi a era da terra e o capitalismo a era do capital, agora entramos na era do algoritmo. A forma política que emerge daí não é liberalismo, nem socialismo, nem mesmo o fascismo clássico, mas algo distinto. É um populismo digital autoritário, sustentado pela infraestrutura algorítmica que redefine a própria noção de liberdade. Talvez ainda falte um nome definitivo para essa era, mas o que já não falta são sinais de que estamos dentro dela. Ignorá-los é se iludir com a ideia de que o palco segue intacto, quando na verdade o script foi reescrito por mãos invisíveis.
Podemos sentir um desconforto ao reconhecer esses traços no presente. É compreensível. O autoritarismo algorítmico não se revela em anúncios solenes, mas em detalhes cotidianos. Está nos feeds que consumimos, nas recomendações que seguimos, nas indignações que repetimos. O que está em jogo não é apenas o futuro da política, mas a própria condição humana diante de sistemas que sabem mais sobre nós do que nós mesmos. Se parece exagerado, é justamente porque fomos treinados a achar que exagero é sempre conspiração. A ironia é que, quando nos dermos conta, talvez já seja tarde demais.
Compartilhe:
Descubra como a sua empresa pode ser mais analítica.