O Jogo Invisível

Última atualização: 12 de novembro de 2025
Tempo de leitura: 5 min

Quando um líder escolhe privilegiar os mais ricos, cortar investimentos sociais e ampliar gastos militares, é natural que parte da sociedade se pergunte: por que ele faz isso? Mas talvez a pergunta mais importante não seja sobre a motivação em si, e sim sobre a eficácia dessa estratégia. Porque, em pleno século XXI, dentro de regimes democráticos com imprensa livre, redes sociais ativas e ciclos eleitorais regulares, há algo ainda mais desconcertante do que a adoção de políticas impopulares. É o fato de que, muitas vezes, elas funcionam. Funcionam porque o jogo invisível está ativo, mantendo esse líder no poder, elegendo seus sucessores e consolidando uma lógica de dominação que não depende da força bruta, mas da manipulação das regras, da linguagem e das emoções.

Essa é a camada menos visível do jogo político moderno. Democracias contemporâneas não caem com tanques nas ruas. Elas se esvaziam de dentro para fora, lentamente, com respaldo legal, apoio institucional e a cumplicidade passiva de setores que lucram com o desequilíbrio. Um presidente que reduz impostos para os mais ricos enquanto corta recursos de saúde, educação e assistência social pode, à primeira vista, parecer suicida politicamente. Mas ele sabe que não governa para agradar todos. Ele governa para consolidar uma base, garantir o fluxo de dinheiro e manter o controle da narrativa. Isso basta.

Nos Estados Unidos, a recente aprovação do pacote orçamentário apelidado de “Big Beautiful Bill” escancarou essa estratégia. O projeto tornou permanentes os cortes de impostos para os mais ricos e promoveu o maior enxugamento da rede de proteção social em décadas. Ao mesmo tempo, elevou significativamente os gastos militares, sobretudo com foco em controle de fronteiras. Os números são impressionantes, mas mais impressionante é o silêncio que os acompanha. É assim que O Jogo Invisível se mantém: a oposição critica, claro, mas a base permanece firme. O mercado aplaude. Os aliados do governo falam em responsabilidade fiscal, em patriotismo, em eficiência. O truque está em fazer o eleitor médio acreditar que o sacrifício é necessário, que os cortes são meritocráticos, que os pobres são preguiçosos, que os imigrantes são ameaça e que a segurança só virá com mais armas, mais muros, mais vigilância. E para muitos, isso basta.

A chave está na narrativa. Quando se tem controle sobre o que é dito, sobre como é dito e sobre quem pode dizer, qualquer dado pode ser manipulado, qualquer realidade pode ser ressignificada. Cortes sociais deixam de ser cruéis e passam a ser corajosos. Incentivos a bilionários deixam de ser escandalosos e passam a ser estratégicos. Desigualdades estruturais passam a ser vistas como naturais. E para isso funcionar, não é necessário que todos acreditem. Basta que alguns desacreditem de tudo. A dúvida, nesse jogo, vale mais do que a convicção.

Além disso, há uma engenharia institucional em curso. Líderes que pretendem se perpetuar no poder não precisam romper com as regras. Eles precisam redesenhá-las aos poucos. Enfraquecem tribunais. Submetem órgãos de fiscalização. Aparelham instâncias técnicas. Reduzem a transparência. Limitam o acesso à informação. Premiam aliados no Legislativo. Escolhem ministros simpáticos à causa. Tudo dentro da normalidade democrática. Tudo com assinatura e carimbo. O sistema não é quebrado. É reconfigurado. E assim, a possibilidade de alternância real vai sendo drenada, como uma bateria que ainda parece cheia, mas já não alimenta nada.

Do ponto de vista eleitoral, a lógica é igualmente sutil. Em vez de ampliar sua base, o líder trabalha para encolher a confiança do eleitor no processo como um todo. A dúvida sobre o sistema eleitoral, o ataque constante à imprensa, a guerra simbólica contra as universidades, o desprezo pelas vozes críticas, tudo isso não é ruído. É método. Porque quanto mais o eleitor médio se sentir desorientado, mais provável que vote por instinto, medo ou ressentimento. E líderes populistas sabem operar nesse terreno com maestria.

É curioso como muitos analistas subestimam esse tipo de projeto por parecer contraditório com os valores democráticos. Mas essa é a grande ilusão. O projeto não é contraditório. Ele é estratégico. Ele parte do diagnóstico de que a democracia moderna é frágil justamente por depender mais da percepção de legitimidade do que de estruturas sólidas. Se o cidadão médio deixar de acreditar que sua participação faz diferença, o jogo está ganho. Se ele achar que todo político é igual, que todo jornal mente, que toda eleição é manipulada, então o campo está livre para quem oferece certezas simples em tempos confusos.

E aí, chegamos ao ponto central. Um líder que dá privilégios aos poderosos, desmonta políticas públicas e investe em controle não está, necessariamente, tentando governar melhor. Ele está tentando durar mais. Porque o poder, nesse modelo, não é instrumento. É fim. E é assim que O Jogo Invisível opera: ele precisa de um eleitor que se sinta vigiado, mas protegido. Punido, mas incluído. Enfraquecido, mas representado. É uma engenharia emocional, além de institucional. Um ciclo que se retroalimenta com promessas de grandeza futura e medo do caos iminente.

Por isso, quando um governo que se diz democrático privilegiar os de cima, punir os de baixo e investir mais em armas do que em pontes, saiba que não se trata de incoerência. Trata-se de cálculo. Um cálculo frio, tecnicamente preciso, que usa a liberdade como vitrine e a desigualdade como combustível. E o mais perigoso disso tudo é que, dentro das regras atuais, funciona. Até que alguém que ainda perceba o invisível decida reprogramar o jogo.

Compartilhe:

Marcelo Molnar

Sobre o autor

Marcelo Molnar é sócio-diretor da Boxnet. Trabalhou mais de 18 anos no mercado da TI, atuando nas áreas comercial e marketing. Diretor de conteúdo em diversos projetos de transferência de conhecimento na área da publicidade. Consultor Estratégico de Marketing e Comunicação. Coautor do livro "O Segredo de Ebbinghaus". Criador do conceito ICHM (Índice de Conexão Humana das Marcas) para mensuração do valor das marcas a partir de relações emocionais. Sócio Fundador da Todo Ouvidos, empresa especializada em monitoramento e análises nas redes sociais.

Posts relacionados
O Jornalismo Que Alimenta a...

Há algo de irônico. E dolorosamente previsível. O que está acontecendo com...

Leia mais >
Comunicação no...

Se existe um setor que vive permanentemente na fronteira entre ser...

Leia mais >

Entre em contato

Descubra como a sua empresa pode ser mais analítica.