Última atualização: 1 de outubro de 2025
Tempo de leitura: 5 min
A desintermediação já não é novidade. Aconteceu com os bancos, com as viagens, com o jornalismo, com o entretenimento. Mas há algo de mais profundo acontecendo agora. O que antes era uma ameaça lateral, limitada a setores específicos, agora chega ao coração da lógica digital: o próprio código. Programar virou coisa de amador. Aquilo que por décadas foi considerado o centro nervoso da economia da informação, escrever software, começa a se dissolver diante da nova onda de inteligência artificial generativa.
E o que está acontecendo com a engenharia de software é, essencialmente, o mesmo processo que desmontou a mídia tradicional nas últimas duas décadas. Com uma diferença: agora, o impacto não é sobre quem comunica, mas sobre quem constrói as ferramentas de comunicação. Não estamos mais falando da desintermediação da mensagem. Estamos falando da desintermediação da máquina que veicula a mensagem. Isso muda tudo.
No começo dos anos 2000, publicar exigia expertise, tempo e validação. Revistas, editoras, jornais e emissoras ditavam o que era digno de atenção pública. Era preciso um diploma, um chefe de redação, uma impressora rotativa, uma linha editorial. Hoje, com um telefone na mão, qualquer adolescente pode criar um canal, editar um vídeo, publicar um podcast e alcançar milhões.
O resultado não foi apenas a queda das audiências tradicionais, mas o colapso da autoridade jornalística como conhecíamos. Os algoritmos viraram os novos editores. Os dados, os novos repórteres. Os likes, os novos selos de aprovação. Agora, o que se vê na engenharia de software segue o mesmo script. O que antes exigia anos de formação técnica, conhecimento de estruturas de dados, domínio de sintaxe, controle de versão, boas práticas de design e integração, hoje pode ser executado por um assistente virtual. O GitHub Copilot, da Microsoft, não apenas sugere linhas de código. Ele escreve módulos inteiros. Refatora trechos. Corrige bugs. E conversa com o desenvolvedor. O que antes era domínio exclusivo de engenheiros agora é acessível a curiosos.
Mas o mais interessante não é isso. O mais revelador é que, assim como na mídia, o valor está migrando. Não está mais no conteúdo produzido, mas na infraestrutura que permite a produção. A Microsoft não quer vender editores de texto ou pacotes de desenvolvimento. Ela quer ser o tecido invisível onde toda criação acontece. A visão é tornar-se como a eletricidade. Invisível, indispensável e, acima de tudo, ubíqua. Assim como o YouTube não cria vídeos, mas lucra com bilhões de uploads diários, a Microsoft quer ser o ambiente onde qualquer pessoa, programadora ou não, pode transformar uma ideia em software funcional. Isso desloca o eixo do poder. O programador já não é mais o detentor da mágica. Ele é, no máximo, um orquestrador do sistema.
E esse movimento carrega uma ironia. Em nome da produtividade, estamos automatizando justamente as tarefas que antes justificavam a existência da profissão. Debugar código? A IA faz. Preencher boilerplate? A IA faz. Traduzir requisitos básicos em funções simples? A IA faz. Como consequência, o programador que dominava o detalhe técnico, mas era incapaz de pensar sistemicamente, começa a perder relevância.
É a repetição da história: o redator que escrevia bem, mas não entendia de SEO, redes sociais ou cultura de comunidade, foi atropelado pela lógica algorítmica. Não é a qualidade do texto que importa. É o engajamento. No código, não será diferente. A elegância da função não importa, se ela não resolver um problema real, com impacto mensurável.
Por isso, as competências valorizadas começam a migrar. Antes, era preciso saber tudo de frameworks, bibliotecas e sintaxe. Programar virou coisa de amador, agora, é preciso saber como as pessoas pensam, o que desejam, onde sentem dor, e como o software pode aliviar essa dor sem criar outra. A busca é pelo profissional que traga clareza diante do caos. Que entenda de sistemas, comportamentos, cultura e poder. A curiosidade tem que ser patológica. Que encare a IA como aliada, não como substituta. Que saiba moldar agentes inteligentes com consciência dos impactos sociais. Que construa, antes de qualquer linha de código, uma pergunta relevante. O desenvolvedor que apenas executa será substituído. O que formula a pergunta, não.
Estamos, portanto, diante de uma transição de identidade. A profissão do futuro não é a do engenheiro que escreve código impecável. É a do engenheiro-antropólogo, do designer-ético, do gestor de produto com visão sistêmica e repertório filosófico. A IA pode escrever, mas não pode compreender o contexto. Pode sugerir, mas não pode sentir. Pode responder, mas não pode decidir o que é certo. Por isso, paradoxalmente, quanto mais avançada a automação, mais valiosa a intuição humana. O futuro do desenvolvimento dos negócios não será técnico. Será civilizacional.
Esse processo, claro, não é linear. Nem pacífico. Mas é inevitável. A inteligência artificial está transformando o software no que a web 2.0 fez com o conteúdo: um fluxo contínuo de criação pulverizada, em que a infraestrutura vale mais do que o criador. A diferença entre ser autor e ser ferramenta será cada vez mais tênue. E isso exige uma nova mentalidade. Menos obcecada com o “como” e mais interessada no “porquê”. O código será commodity. A visão sistêmica, o novo core skill. Quem não entender isso continuará acreditando que o mundo ainda precisa de digitadores, sem perceber que todos ao seu redor já estão falando com as máquinas em linguagem natural.
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